Por Celso Vicenzi
“Ele imagina
que tudo pode ser compreendido sem o mínimo esforço intelectual”. Reflexões em
torno de poema de Brecht, no século 21
Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não
participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as
redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega
ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a
ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede
liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da
farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito
influenciadas pela manipulação midiática dos fatos. Não vê a pressão de
jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que
também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na
contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços
significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem
enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas
públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo
tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que
ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.
Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela
mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o
escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve
nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A
principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa
da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.
O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele
não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as
fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não
desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase
pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o
jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico
Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às
vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não
é tão simples (Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com
uma imagem”). Fotos e imagens também são construções, a partir de um
determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto
do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o
Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A
irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram
a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes
mortos foi deflagrada.
O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha
construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes
fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista.
O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de
esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na
antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os
campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos.
Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em
“especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de
poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente
“best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é
o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil
que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior
de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador
das empresas nacionais e multinacionais.”
O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não
entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar
fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para
serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma
parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou
em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político
corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande
capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para
adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as
populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.
Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação
a fazer: Nada é impossível
de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai,
sobretudo, o que parece habitual.
Fonte: http://outraspalavras.net/posts/o-analfabeto-midiatico/?utm_source=feedly
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